24 de out. de 2009

Soldadinho...

Seus olhos abriram-se lentamente. Havia algo de diferente no ar, algo que ele nunca antes sentira. Há muito que nada penetrava nas trevas de seu refugio fundo o suficiente para incomodá-lo, mas aquele som, sutil e doce, inundava seus ouvidos como se brotasse de dentro de sua própria alma.

Algo havia mudado, podia sentir, era como se a própria sombra em que se envolvera estivesse clareando, revelando aos poucos, uma silhueta invasora. Imóveis, ele em seu espanto e ela por algum motivo qualquer, ficaram ali, silenciosamente, num tempo que poderia ser apenas um segundo, ou talvez, milhares de séculos.

Quase imperceptivelmente aquele som que o acordara começou a aumentar e agora, era-lhe quase possível reconhecer as notas de um piano fantasma, invisível porem potente o suficiente para reverberar suas notas pelas paredes curvas até a silhueta, que como atendendo a musica que saia dele, movimentava-se agora lentamente.

Seu corpo movia-se gracioso pelo espaço, desenhando cores, ditando sentidos, afastando de si a sombra, revelando um palco até então nunca visto. Ele sentia-se maravilhado e com alguma ajuda de seu fuzil pôs-se de pé. Era necessário chegar mais perto, ver com mais clareza a estranha silhueta que invadia seu refugio e causava tantos distúrbios.

Aproximar-se era trabalhoso, arriscado. Com seu sempre confiável fuzil fazendo as vezes de muleta atravessava vagarosamente as trevas que ainda restavam entre a silhueta e ele. A cada passo um novo som, um novo sentido. A luz o incomodava, e foi tentando escapar dela que acabou por chocar-se com uma cadeira. Não se lembrava de nenhuma cadeira ali, mas por ocasião do choque resolveu sentar-se.

A silhueta dançava, ignorante de sua platéia e o som de sua risada mesclava-se a musica, fazendo da melodia algo ainda mais belo e com isso diminuía ainda mais as sombras a seu redor. Sua roupa, preta, contrastava com sua pele branca e com o vermelho recém descoberto das paredes e limites de seu palco.

Desde que escolhera habitar ali, nunca mais tinha ele visto, a verdadeira cor das paredes, sentindo-se mais cômodo, e quem sabe até protegido, com as sombras ao seu redor, mas como havia sentido antes, algo mudara. Mudou a cor, mudou o jeito, mudou o formato, mudou tudo. O que antes era um espaço vazio e escuro agora era um teatro, com direito a cadeiras para a audiência e palco para os invasores.

E distraído em seus pensamentos, mal percebeu que sua presença fora notada, até que, em meio a uma chuva de pétalas negras, percebeu a silhueta vindo em sua direção. Seu andar era suave e delicado e seu corpo, desenhado contra a luz, era perfeito. Levantou-se a tempo de sentir os braços da silhueta rodearem seu corpo. Ela sorriu, ergueu-se na ponta dos pés e lhe deu um beijo nos lábios. Fechou seus olhos, apenas para quando abrir, encontrar os dela, e confirmar para si próprio que aquele coração não era mais o esconderijo escuro que um dia ele construira, mas que aquele coração, de paredes curvas e vermelhadas agora pertencia a outra pessoa.

Ele fora vencido sem um disparo, sem um tiro, sem uma luta. Ele estava amando.

2 comentários:

E.N. disse...

parece que acertou o alvo, em cheio...

Homens x Conceitos disse...

Cara, seus textos são incríveis...

Se eu fosse mulher e lesse algo assim meu jovem, eu te agarrava.... (risos)

Grande abraço!!