30 de out. de 2009

Redenção


Eu estava ali, no meio daquele maldito temporal, de braços abertos gritando palavras surdas que se perdiam no ar sem serem ouvidas nem por mim mesmo. Gritava palavras, gritava navalhas que dilaceravam minha garganta e deixavam o gosto amargo do sangue na minha boca. Merda.

Ela também estava ali. Estava jogada, largada no meio da rua com sua caneta cheia de vodca. Estava encolhida e tão encharcada como eu, mas seus olhos brilhavam, refletiam, diziam que ainda existia alma dentro daquele corpo estirado no chão. Meus olhos eram opacos.

Como chegamos ali? Não faço idéia. Acho que tudo nos levara até aquele ponto, todas as escolhas que fizemos, tudo o que esquecemos ou fingimos não ver, tudo o que sentimos, tudo o que estragamos, tudo o que não deixamos ser. Aquele momento era claro, cristalino. O vento soprava forte e me deixava de joelhos. Ela continuava deitada, protegida naquela posição fetal, murmurando algo que eu jamais fui capaz de compreender.

Tudo doía naquele momento. O nariz gelado, os braços, os ossos, a respiração. Doíam as manhas de sol, mesmo que imaginadas. Doía a fé e doía a esperança de um futuro possível que nunca chegou a acontecer. Doíam as doses de bebida que prometeram uma vez nos fazer esquecer, doíam todas as noites, todas as madrugadas, que entre palavras fingimos a realidade e construímos o impossível. Doía o impossível, doía o “e se...”.

Eu gritava. Buscava redenção por todo mal que lhe fiz. Eu tinha feito questão de existir, de criar, e agora era minha culpa que ela estivesse ali, eu havia sido egoísta, e estava errado, e estava certo. Eu havia criado a noite. Ela murmurava, gemia sob o peso de suas desaprovações, de seus nãos. Ao seu lado estavam as asas, minhas e delas, que ela fizera questão de arrancar com sua incredulidade e teimosia. Ela me matara um pouco também, assim como eu fizera a ela, e ela, ela criou a chuva.

O frio, o vento, o beco, eram apenas alegorias, fantasiosas interpretações de uma realidade impossível. Talvez a chuva fosse vermelha e o chão fosse branco, talvez me fizesse lembrar do sangue atingindo o piso branco do banheiro no dia em que eu não me cortei. Será que foi ela? Talvez isso só tenha existido nas paginas de um caderno velho, ou de um livro empoeirado, largado no canto da casa de um louco. Talvez, nada fosse real a não ser o meu grito e sua vodca. Talvez isso tudo fosse só um conto de fadas que deu errado, talvez só a dor fosse real.

A luz da rua finalmente queimou, e ali, naquele beco, imergimos juntos na escuridão do tempo.



dane-se a terceira pessoa, dói do mesmo jeito

24 de out. de 2009

Soldadinho...

Seus olhos abriram-se lentamente. Havia algo de diferente no ar, algo que ele nunca antes sentira. Há muito que nada penetrava nas trevas de seu refugio fundo o suficiente para incomodá-lo, mas aquele som, sutil e doce, inundava seus ouvidos como se brotasse de dentro de sua própria alma.

Algo havia mudado, podia sentir, era como se a própria sombra em que se envolvera estivesse clareando, revelando aos poucos, uma silhueta invasora. Imóveis, ele em seu espanto e ela por algum motivo qualquer, ficaram ali, silenciosamente, num tempo que poderia ser apenas um segundo, ou talvez, milhares de séculos.

Quase imperceptivelmente aquele som que o acordara começou a aumentar e agora, era-lhe quase possível reconhecer as notas de um piano fantasma, invisível porem potente o suficiente para reverberar suas notas pelas paredes curvas até a silhueta, que como atendendo a musica que saia dele, movimentava-se agora lentamente.

Seu corpo movia-se gracioso pelo espaço, desenhando cores, ditando sentidos, afastando de si a sombra, revelando um palco até então nunca visto. Ele sentia-se maravilhado e com alguma ajuda de seu fuzil pôs-se de pé. Era necessário chegar mais perto, ver com mais clareza a estranha silhueta que invadia seu refugio e causava tantos distúrbios.

Aproximar-se era trabalhoso, arriscado. Com seu sempre confiável fuzil fazendo as vezes de muleta atravessava vagarosamente as trevas que ainda restavam entre a silhueta e ele. A cada passo um novo som, um novo sentido. A luz o incomodava, e foi tentando escapar dela que acabou por chocar-se com uma cadeira. Não se lembrava de nenhuma cadeira ali, mas por ocasião do choque resolveu sentar-se.

A silhueta dançava, ignorante de sua platéia e o som de sua risada mesclava-se a musica, fazendo da melodia algo ainda mais belo e com isso diminuía ainda mais as sombras a seu redor. Sua roupa, preta, contrastava com sua pele branca e com o vermelho recém descoberto das paredes e limites de seu palco.

Desde que escolhera habitar ali, nunca mais tinha ele visto, a verdadeira cor das paredes, sentindo-se mais cômodo, e quem sabe até protegido, com as sombras ao seu redor, mas como havia sentido antes, algo mudara. Mudou a cor, mudou o jeito, mudou o formato, mudou tudo. O que antes era um espaço vazio e escuro agora era um teatro, com direito a cadeiras para a audiência e palco para os invasores.

E distraído em seus pensamentos, mal percebeu que sua presença fora notada, até que, em meio a uma chuva de pétalas negras, percebeu a silhueta vindo em sua direção. Seu andar era suave e delicado e seu corpo, desenhado contra a luz, era perfeito. Levantou-se a tempo de sentir os braços da silhueta rodearem seu corpo. Ela sorriu, ergueu-se na ponta dos pés e lhe deu um beijo nos lábios. Fechou seus olhos, apenas para quando abrir, encontrar os dela, e confirmar para si próprio que aquele coração não era mais o esconderijo escuro que um dia ele construira, mas que aquele coração, de paredes curvas e vermelhadas agora pertencia a outra pessoa.

Ele fora vencido sem um disparo, sem um tiro, sem uma luta. Ele estava amando.

13 de out. de 2009

O blues é meu...

Dizem que Deus é pai... bom, então eu sou órfão. Ou não, ou pior, meu pai é o blues. Isso, meu pai é o blues. Meu pai é o lamento, minha mãe a dor. E essa família me rasga, me dilacera as carnes, me derrama o sangue desde que nasci. E do meu sangue nasce suas risadas, suas alegrias. Do meu sangue eles se alimentam, e com ele constroem os fios dessa realidade maldita que usam para me cortar.

E talvez eu já tenha nascido miserável, talvez eu já tenha sido derrotado antes do começo do jogo, talvez eu tenha uma alma pequena demais, talvez eu tenha sido abortado... Talvez eu não tenha sido feito pra isso, talvez eu não tenha sido feito pra nada... talvez demais, talvez... eu não fui feito pra nada, eu fui feito errado, errado e vivo, e agora busco piedade, seja dada seja minha própria.
Hoje é mais um dia de tarde cinza. Eu fico em casa, vejo TV, bebo refrigerante. Estrago a lata entre meus dedos. Uma chuva fina cai lá fora. Um temporal aqui dentro. E esse temporal molha tudo, explode a TV, escorre pela mesa, alaga o chão, e não vaza pelo ralo. Ele molha o pão e a faca em cima da pia. Tudo igual. Meus livros se desmancham sob o temporal... minha vontade também. Sento no sofá encharcado, tomo o temporal, sinto cada gota descendo por dentro e por fora, sinto meu corpo envelhecer, sinto que meus mal-tratos começa a aparecer, sinto a pele ressecar. Abro a boca pra gritar, mas mais água entra. Sinto a garganta raspando, dolorida, os olhos inchados. Tudo igual.

O temporal tem gosto de vodka. Vou até a vitrola, lembrança de gente que eu nunca conheci. Dou corda e coloco um disco do B.B. King. O som invade o ambiente, arde nos ouvidos, diminui o ritmo do coração. O som corta, mas deixa a pele intacta. A alma sangra. Pego uma caixa de fósforos. Sim, sou eu, eu que começo o incêndio. Vejo as chamas subindo temporal acima, queimando o teto, destruindo tudo... O vermelho do fogo é bonito mas não esquenta. A pele não sente, a alma não sente. Ilusão.

Quando o fogo termina, tudo está igual, sempre igual... e a tarde continua cinza lá fora.

4 de out. de 2009

Terça Feira

E como dois peregrinos em busca de abrigo meus olhos buscavam os dela. Olhos de encanto e mistério, de feitiço e paixão. Duas lagoas castanhas onde se perdiam meu espírito e meu fôlego. Duas estrelas reluzentes que guardavam as promessas do amanha e do depois. Dois olhos risonhos, brincalhões, ladrões de cores e brilhos. Dois egoístas que pareciam querer toda minha atenção para si... e conseguiam.

Enlacei sua cintura e puxei-a para junto de mim. Senti seu coração acelerar? Senti meu coração acelerar. Senti um pequeno arrepio percorrendo a espinha, não sei se minha ou dela. Seu corpo agora tocava o meu e, talvez no movimento mais doce que já vi, ficou na ponta dos pés para que nossos rostos pudessem se aproximar. Seu hálito era intoxicante e não pude deixar de pensar que ali, respirando o mesmo ar que passava por seus lábios entreabertos, até mesmo o ato de respirar tomava uma dimensão mágica e agora, tudo o que eu era estava ligado aquela menina que correspondia com força ao meu abraço.

Sua mão tocou meu rosto e senti o corpo todo estremecer. Sua pele cor de neve era macia e quente, e seus movimentos estavam acima da minha compreensão. Fechei os olhos por alguns instantes enquanto a realidade a nossa volta se desfazia e seu perfume nos levava a um campo florido, onde sozinhos sussurrei ao seu ouvido o quanto me fazia falta e o quanto eu gostava dela. Sua voz em melodia também confessava saudades enquanto eu diminuía ainda mais o espaço já quase inexistente entre nós, como que querendo fundir aquela existência a minha e completar enfim todas as lacunas próprias de mim mesmo.

Afastei meu rosto a fim de admira-la um pouco mais e enquanto seu cabelo lentamente se desprendia da minha barba por fazer fui irrepreensivelmente atraído por seus lábios e enquanto tirava lentamente a pintura vermelha, tão cuidadosamente feita, ao encostá-los aos meus me peguei imaginando se algum dia a vida seria melhor do que isso, ou se alguma outra terça feira de manha seria novamente tão boa assim.